23 de novembro de 2017

O que pensa quem não quer discutir gênero

Nova Escola, 21/11/2017

Pesquisa com manifestantes contrários à filósofa Judith Butler revela ideias equivocadas sobre o tratamento do tema nas escolas
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Por: Rodrigo Ratier
Parada LGBT em Montreal, Canadá (Getty Images)
“Menino nasce menino”, “menina nasce menina”, “xô, Judith” – e, claro, “não à ideologia de gênero”. Com mensagens desse teor, um grupo de manifestantes recepcionou a filósofa americana Judith Butler num evento em São Paulo. A palestra – que nem era sobre gênero, mas sobre democracia – ocorreu em 6 de novembro e o assunto vem rendendo desde então. A professora da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, é uma referência no estudo de gênero e sexualidade, e sua viagem ao Brasil inflamou as redes sociais. Cerca de 320 mil pessoas assinaram uma petição virtual criticando sua presença e algo em torno de uma centena se mobilizaram para protestar, de carne e osso, na frente do Sesc Pompéia. Outro grupo a hostilizou pessoalmente no aeroporto de Congonhas.
Uma coisa são xingamentos, hashtags e os cartazes. Mas, para além das palavras de ordem, o que pensam essas pessoas sobre Educação? Um levantamento da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP) esboça algumas respostas. A equipe de pesquisa, coordenada pela antropóloga Isabela Oliveira Pereira da Silva, aplicou 93 questionários e fez 31 entrevistas qualitativas com manifestantes que compareceram ao evento – tanto para criticar quanto para defender a filósofa americana.
Os resultados apontam dois extremos opostos em quase tudo. Do lado dos favoráveis a Judith Butler, um grupo que se autodefine em termos partidários como de esquerda (71%) e, em termos político-morais, como libertário (43%) ou progressista (29%). Nos contrários à filósofa, uma maioria que se considera de direita (60%) e conservadora (81%). Os defensores eram mais jovens e escolarizados: 52% entre 18 e 34 anos e 60% com ensino superior ou pós graduação – um perfil compatível com o evento, de natureza acadêmica. Entre os críticos, predomínio da faixa de 35 a 54 anos (41%) e de diplomas do Ensino Médio (45%, entre cursos completos e incompletos).
Casais héteros, intervenção militar e Bolsonaro
“O levantamento foi feito com um grupo reduzido e num contexto muito específico, em que a polarização era esperada. Não é um retrato do Brasil”, esclarece a antropóloga Isabela, coordenadora do estudo. De fato, pesquisas como a do instituto Ideia Big Data mostram que as posições dos brasileiros são bem menos conservadoras do que se pensa. E a sondagem do Ibope indica que 84% dos brasileiros apoiam discutir gênero nas escolas. A força da pesquisa é jogar luz sobre as ideias dos grupos conservadores. Algumas pistas que a pesquisa coletou:
Entre os contrários a Judith Butler...
...90% acham que toda família deve ser composta por um casal de homem e mulher… 65% concordam que a religião é fundamental na formação do caráter… 51% defendem que casais gays ou transexuais não podem criam filhos… 84% querem a redução da maioridade penal… 41% pensam que uma intervenção militar poderia ajudar o Brasil… 63% pretende votar em Jair Bolsonaro nas eleições do ano que vem
“Os conservadores organizados são a novidade política mais recente. Vêm inclusive ganhando espaço na discussão sobre Educação”, diz a antropóloga.
Judith Butler em palestra na Universidade de Yale, Estados Unidos (Reprodução)
Ideias que não existem na escola
Na opinião de Isabela, a questão de gênero é a porta de entrada para que grupos conservadores passem a discutir o papel da escola de forma mais ampla. O resumo das opiniões está na ilustração que fecha essa reportagem: só 2% acha que é preciso falar de gênero nas escolas e apenas 3% pensam que sexualidade deve estar no currículo (para 97%, isso é assunto da família). A questão de gênero, vista como “ideologia” – com toda a carga negativa que a palavra carrega –, é um risco para crianças, segundo 92% do grupo. Não surpreende, por fim, que 86% apoiem o Escola Sem Partido.
Outros achados vêm das respostas qualitativas. Quando os críticos fazem cartazes do tipo “não à ideologia de gênero”, o que querem dizer? A equipe de Isabela fez essa pergunta aos manifestantes. E uma amostra das respostas – ainda em análise, antecipadas com exclusividade para NOVA ESCOLA – é a seguinte:
- “A ideologia de gênero transmite conceitos totalmente contrários à biologia e à ordem natural das coisas.”- “O perigo é deixar as crianças acharem essas escolhas normais e aceitarem que podem decidir sobre isso.”- “Eles [defensores da teoria de gênero] querem tirar a autoridade dos pais.”- “Querem acabar com a família tradicional e passar a ideia de que a homossexualidade é cool, moderna e que a maioria é homossexual. Isso não é verdade.”
“Para os opositores, a ideia geral é que ideologia de gênero significa ensinar as crianças a ser gays”, afirma Isabela. “Não existe uma aula desse tipo. Nunca ninguém fez algo parecido com isso.”
A própria Judith Butler endossa a tese de desconhecimento. “Desde o começo, a oposição à minha presença no Brasil esteve envolta em uma fantasia”, escreveu ela em artigo publicado na Folha de S. Paulo. Classificando os comentários como “ficção interessante e nociva que deixou muita gente alarmada”, Judith defende que a teoria de gênero não é ideologia. “Em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é tanto ilusório quanto dogmático, algo que ‘tomou conta’ do pensamento das pessoas de uma maneira acrítica. Meu ponto de vista, entretanto, é crítico, pois questiona o tipo de premissa que as pessoas adotam como certas em seu cotidiano.”
Diz a filósofa que o objetivo da teoria, expressa no livro Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, é “gerar mais liberdade e aceitação para a ampla gama de identificações de gênero e desejos que constitui nossa complexidade como seres humanos”. Para Judith, o conceito de gênero – ou seja, as ideias que possuímos sobre o que é ser homem ou mulher – variam conforme a cultura e assumem diferentes formas ao longo da história.
“Como atores históricos, nós temos alguma liberdade para determinar esses significados”, afirma. “Quantos de nós ainda acreditamos que o sexo biológico determina os papéis sociais que devemos desempenhar? Quantos de nós ainda sustentamos que os significados de masculino e feminino são determinados pelas instituições da família heterossexual e da ideia de nação que impõe uma noção conjugal do casamento e da família? Famílias queers e travestis adotam outras formas de convívio íntimo, afinidade e apoio. Mães solteiras têm lados de afinidades diferentes. A mesma coisa se dá com famílias mistas, nas quais as pessoas se casam novamente ou se juntam com famílias, criando amálgamas muito diferentes daqueles vistos em estruturas familiares tradicionais.”    
O que a Educação pode fazer
Para Isabela, o temor às ideias de Judith Butler tem explicação. A antropóloga diz que o termo “ideologia de gênero” virou uma categoria de acusação. “Nesse sentido, quando os pais pensam que a proposta da escola não vai ser boa para as crianças, é compreensível que protestem. Todos querem o melhor para seus filhos.”
Lidar com esse tipo de mal entendido é desafiante, mas também uma oportunidade. Na opinião de Isabela, o contato de professores e gestores com famílias que se oponham a discussões de gênero em sala é a melhor forma de avançar a discussão. O diálogo e o detalhamento da proposta pedagógica são as ferramentas essenciais. “Os educadores podem criar caminhos para que as pessoas fiquem mais informadas a respeito dos estudos da área e vejam que não se trata de ideologia. Por enquanto, a discussão se baseia muito no medo das pessoas comuns. A escola pode ajudar a mudar isso”, finaliza.
Infográfico: Rafael Castro / Nova Escola

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