5 de agosto de 2016

Contra a 'Escola sem Sentido'

Opinião: 

05 de agosto de 2016
"Precisamos avançar no tempo e não retroceder, tanto em Educação como em todo o restante de nossa agenda", afirma Fernando Abrucio

Fonte: Valor Econômico (SP)

Nesse momento de grande crise, o país enfrenta vários desafios. Melhorar a gestão pública, reformular o sistema político, aperfeiçoar e ampliar o combate à desigualdade, tornar a Previdência Social mais justa e sustentável ao longo do tempo, enfim, são tantas as questões, complexas e de difícil resolução, que nem sabemos se teremos condições políticas de realizá­-las com a urgência que merecem ser tratadas. Numa hora como essa, não se deveria se gastar muito tempo com a discussão de temas irrelevantes e anacrônicos. Mas não é que surge na agenda legislativa um projeto propondo a chamada "Escola sem Partido" como um item importante para melhorar o Brasil? Ao procurar entendê­-lo, constatei que melhor seria chamá­-lo de "Escola sem Sentido", dado que sua concepção não se baseia em evidências e estudos, nem na experiência internacional, atrapalha a construção de uma reforma educacional condizente com nossos males e, pior, pode asfixiar a escola, acabando por matar o seu sentido.
Um diagnóstico honesto sobre a educação brasileira deveria dizer, em primeiro lugar, que houve uma série de melhorias nos últimos 20 anos, como a universalização do ensino fundamental, a ampliação do número de alunos nas universidades e a criação de amplos sistemas de avaliação, mas que o modelo de ensino ainda tem vários problemas. Nenhum deles, no entanto, se deve prioritariamente ao que argumenta a Escola sem Partido. Isto é, o nível de ideologização dos professores ­ algo ainda a ser comprovado cientificamente ­ não se constitui uma das principais causas das fragilidades e carências da política educacional do país.
A má qualidade da educação básica tem como métricas questões como a baixa proficiência dos alunos em português e matemática e a grande evasão dos estudantes do ensino médio. As causas desses problemas relacionam-­se com a formação inadequada dos professores, a fragilidade da gestão nas redes municipais e estaduais, a ausência de currículos adequados, a falta de uma carreira docente mais estruturada no que tange à remuneração e à cobrança por resultados e a falta de uma escola mais capacitada para mobilizar a comunidade interna e externa para enfrentar seus desafios.
Diversos estudos e pesquisas científicas apontam essas temáticas como centrais à reforma educacional e não há nenhum trabalho relevante que dê centralidade aos argumentos apresentados pela "Escola sem Partido". Ressalte­-se que nenhum país com destaque em avaliações internacionais no plano da educação orienta­-se por propostas nos termos da "Escola sem Partido". A liberdade e a criatividade do professor, aliadas a um controle de seus resultados pedagógicos (o quanto conseguem melhorar o aprendizado dos alunos), aparecem como elementos importantes em casos de sucesso.

Docentes que estimulem alunos curiosos e com consciência crítica, produzindo pessoas que saibam lidar com a diversidade de opiniões, são o protótipo esperado por governos bem­-sucedidos em políticas educacionais. Sugiro que os leitores procurem material sobre a experiência finlandesa, nação que tem estado constantemente entre os primeiros colocados no exame de PISA, o mais importante do mundo. Lá, propõe-­se exatamente o contrário do que defende o projeto do senador Magno Malta. Na verdade, se o governo brasileiro apresentasse tais ideias em fóruns internacionais seria ridicularizado ­ diriam que a "Escola sem Partido" é nonsense.
O projeto em questão não só está distante dos verdadeiros problemas da educação do país e da experiência internacional bem­sucedida. Ele também atrapalha a busca das soluções. Como os estudos em todo o mundo têm mostrado, o professor é a figura­chave do processo educativo. A "Escola sem Partido" propõe um tal clima de perseguição ­ como seus cartazes
ameaçadores ­, numa espécie de "macartismo pedagógico", que seria muito difícil recrutar docentes de qualidade, capazes de exercer seu ofício com criatividade e paixão, elementos essenciais nessa profissão. Isso seria desastroso, pois cerca da metade dos professores da educação básica vai se aposentar até o início da próxima década, gerando uma enorme oportunidade para atrairmos jovens talentosos para lecionar. Será que com as regras da "Escola sem Partido" atrairemos as pessoas adequadas para mudar a educação brasileira? É óbvio que ninguém quer entrar num ofício em que se é, de antemão, suspeito por suas ideias.

O projeto "Escola sem Partido", em verdade, baseia-­se em equívocos conceituais. O primeiro deles é acreditar ­ ou dizer que acredita ­ que seja possível transmitir conhecimentos de uma forma neutra. Isso não é possível em nenhum lugar ou época da história humana. Ao contrário, o ideal é construir uma escola plural, em que várias ideias diferentes possam ser
apresentadas e discutidas, onde os alunos possam discordar dos professores, ou, por meio do que aprenderão em sala de aula, possam divergir dos seus pais. É bem possível que, em muitas partes do Brasil, professores de história estejam vendendo uma única versão do mundo a seus alunos. Mas a solução é multiplicar as visões e não encontrar algo que seja neutro. Aliás, sinceramente, não sei se os propositores desse projeto são ingênuos ou se escondem que sua ação é fortemente ideologizada, baseada numa concepção conservadora da sociedade e da família.

Essa desconfiança quanto aos propósitos desse movimento reforça­-se quando se constata um segundo equívoco conceitual na "Escola sem Partido". É bom que se diga em voz alta: a escola não é extensão da casa dos pais dos alunos. Todos os sistemas educacionais mais estruturados no mundo seguem esse pressuposto, uma vez que partem da visão de que a escola tem um papel importantíssimo na socialização das pessoas, dando elementos que são fundamentais para os indivíduos desenvolverem­-se intelectualmente e no plano dos valores.

É claro que a socialização da escola se soma à feita pela família e por outros universos presentes na formação dos indivíduos. E a complementariedade e o conflito entre essas esferas são, ambos, essenciais para que as pessoas
construam sua visão de mundo a partir do contraste de ideias e experiências. Tentar evitar essa relação é fazer com que os filhos fiquem presos apenas ao que pensam os pais, gerando uma visão anacrônica de mundo. Para usar a visão de Kant, é condenar os jovens à minoridade intelectual e emocional.

Imagino a geração de mimados e intolerantes que sairia desse processo educacional. Toda a crítica ao modelo educacional brasileiro ­ ou à caricatura que construíram dele ­ presente na "Escola sem Partido" talvez necessite de maior clareza quanto ao que se espera da escola. Nela, no mínimo dois objetivos estão presentes. O primeiro é a formação de capital humano, isto é, de um conjunto de saberes que permita ao indivíduo definir­-se profissionalmente e encontrar caminhos para se desenvolver nesse campo.

Quanto mais uma sociedade produz capital humano, mais chances ela tem de produzir maior prosperidade individual e coletiva. Mas cabe frisar que os estudos atuais mostram que certas habilidades socioemocionais resultantes do ambiente escolar, caracterizado pela combinação entre adversidade e colaboração, são fundamentais para o melhor desenvolvimento do capital humano.

Além disso, a escola tem o papel de formar um indivíduo capaz de lidar com a vida adulta, na esfera privada e no mundo público. Isso envolve, entre outras coisas, construir um sujeito crítico e com consciência dos desafios da coletividade. Essa visão cidadã tem mais chances de ser desenvolvida em ambientes marcados pela diversidade de ideias e experiências, algo que envolve a tolerância e o pluralismo. São exatamente esses valores que estão escassos no Brasil atual, e, infelizmente, a "Escola sem Partido" só reforça o radicalismo e a incapacidade de diálogo.
Para concluir, a questão ­chave é a seguinte: se os valores dos pais não podem, em hipótese alguma, ser colocados em questão pelos professores e pelo coordenador pedagógico, os quais não podem expressar suas visões de mundo nem fomentar o debate para além do aprendizado adquirido no universo familiar, o resultado final disso vai ser a morte da escola como instituição viva e essencial na formação de pessoas livres e autônomas, dois ideais da modernidade e que serão ainda mais essenciais no século XXI.

A "Escola sem Partido" baseia-­se em diagnóstico e prognóstico errados. Seus formuladores não apresentam nenhuma experiência prévia desse modelo, implantada em algum lugar relevante, para ancorar suas ideias. Os problemas educacionais do Brasil são muito graves para que se gaste tanto tempo com um projeto tão sem sentido como esse, de modo que fazer com que todo o sistema de ensino siga tal ideário é um suicídio coletivo, o fim de qualquer esperança de criar um país melhor para nossos filhos e netos. Afinal, as novas gerações devem ir além do que pensam suas famílias e construir um mundo melhor do que foi construído por seus ancestrais. Precisamos avançar no tempo e não retroceder, tanto em educação como em todo o restante de nossa agenda.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV­SP

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