21 de julho de 2014

Combate à desigualdade pela raiz


Em artigo publicado em O Globo, a diretora executiva do Laboratório de Educação, Beatriz Cardoso, afirma que é preciso subsidiar os professores que atendem à primeira infância

Cotidianamente, todos nós nos deparamos com o passivo que nosso sistema educacional gera ano a ano. Por mais confortável e estruturada que esteja nossa vida e por melhor que tenha sido a nossa formação e a de nossos filhos, a lacuna que o sistema gera para um contingente tão grande de brasileiros impacta a qualidade de vida, o dia a dia de todos nós.

Ultimamente, queixas sobre o que não funciona em nosso país estão na ordem do dia; ao contrário dos comentários dos viajantes, que encantados se surpreendem de como lá fora as coisas dão certo. Essa sensação, que se manifesta em pequenos detalhes, pode ter relação com muitas dimensões (históricas, culturais) e, entre elas, com o investimento feito nos cidadãos desde muito cedo.

Quanto à educação formal, pode-se dizer que tal investimento não começa apenas nos ensinos fundamental e médio: se dá a partir da educação infantil. Sabe-se que os investimentos, ainda na primeira infância, não só reduzem a desigualdade, mas também produzem ganhos tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. No entanto, a urgência frente ao "apagão de mão de obra" tem gerado uma pressão por investimento no ensino médio. A questão de fundo, porém, continua sendo: por que algumas crianças vão tão longe e outras ficam condenadas aos limites de sua inserção social?

A falta de condições necessárias para desenvolver seu potencial acaba impedindo a mobilidade de um enorme contingente de crianças e jovens. Isso pode ser causado por inúmeros fatores sociais, econômicos, culturais, familiares. No entanto, entre eles, é possível destacar a quantidade e qualidade dos estímulos e informações aos quais os indivíduos são submetidos desde pequenos.

Tal constatação pode parecer simples, e a resposta imediata a esse problema seria, então, ampliar o nível de exposição de todos à informação e a práticas culturais qualificadas. Sem dúvida, isso é parte da solução, mas, infelizmente, não é suficiente. Para além do contato com a informação, são necessárias interações que promovam o desenvolvimento de capacidades que levem os sujeitos a ultrapassar o mero consumo de conhecimentos. Trata-se, portanto, de colocar a ênfase no processamento e na produção de ideias, reflexões e respostas. E isso se dá por meio da interação com os adultos e com os objetos de conhecimento. A diferença vai se estabelecendo na qualidade da interação cotidiana e na forma de estimular e acreditar na capacidade daquele pequeno ser.

Para exemplificar a sofisticação do processo de aquisição de conhecimento, tomemos por base o aprendizado de outra língua. Depois de certo investimento para entrar em um novo universo linguístico, é comum sermos capazes de ler e compreender muito mais do que de falar ou escrever. Mesmo assim, na hora de tentarmos nos expressar, de produzirmos algo naquela língua, quem já não viveu a sensação de incapacidade? Esse exemplo é elucidativo do que ocorre com as crianças em seu processo de desenvolvimento linguístico. É aí que mora a diferença: a aprendizagem é resultante da frequência com que são convidadas a gerar respostas próprias, desde muito pequenas, a partir das informações e situações de uso dos conhecimentos em que são inseridas. E é neste terreno que a desigualdade vai se consolidando. O sistema educacional pode propiciar uma apropriação significativa do conhecimento ou pode, na mesma medida, deixar de fazê-lo.

Atualmente, muitas crianças brasileiras já têm acesso a livros, bibliotecas, laptops, celulares, etc. Entretanto, as práticas dos atores que mediam o acesso a essas "tecnologias" são muito diversificadas. E é nesse espaço invisível que se configuram a marginalização e as diferenças na qualidade do relacionamento que as crianças têm com a cultura letrada. Um educador que utiliza estruturas mais sofisticadas da língua para se comunicar com seus alunos, ainda que bem pequenos, e propõe atividades que os incentivem a aprender sobre e a partir da linguagem, oferecerá um contexto favorável ao desenvolvimento de habilidades e conhecimentos que amplificam seu potencial cognitivo. Em contrapartida, alunos expostos a práticas mais mecânicas, transmissivas, podem continuar limitados ao consumo do conhecimento.

A educação pode e deve promover o desenvolvimento pessoal e a inserção social, especialmente em um país com tantas desigualdades como o Brasil. É necessário entender que o acesso à informação não é suficiente para transformar a nossa realidade e que é na composição de inúmeros microaprendizados cotidianos que se cria a oportunidade de desenvolvimento cognitivo. O processo de aprendizagem é cultural e precisa de mediação qualificada desde muito cedo. Portanto, para além da urgência de fazer frente ao "apagão da mão de obra", é necessário investir na produção de conhecimentos no campo da linguagem e nos saberes específicos que se dão na interface entre os domínios teórico e prático. Precisamos subsidiar os professores que atendem à primeira infância, a fim de que todas as crianças brasileiras, desde muito cedo, possam participar regularmente de situações produtivas de aprendizagem.

Beatriz Cardoso é diretora executiva do Laboratório de Educação.

(O Globo)

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