19 de fevereiro de 2013

CRACK E INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA


Folha de S.Paulo.19/2/2013

O ASSUNTO DE HOJE: CRACK E INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
Oferecer uma chance contra a droga
Medicina é assim: internação, alta, acompanhamento. Por que seria diferente com usuários de crack? Precisamos de firmeza contra essa epidemia nacional
Na medicina, funciona assim: o paciente com um quadro clínico agudo, grave, com risco à vida, precisa, na maioria das vezes, permanecer internado por alguns dias, semanas ou até mesmo meses em um leito hospitalar, para receber a assistência médica indicada para seu caso.
Se melhorar e tiver condições, a pessoa tem alta. O acompanhamento passa a ser clínico-ambulatorial, com as medicações necessárias para controlar a doença, além de consultas e exames rotineiros para verificar a evolução do quadro.
É desta forma no câncer, na Aids, nas doenças do aparelho circulatório e nos casos de vítimas de derrame ou politraumatismos decorrentes de acidentes de trânsito.
Por que, então, deveria ser diferente para usuários de drogas como o crack, aqueles que, em razão de sua extrema dependência, sofrem uma série de graves problemas físicos e psíquicos que podem matá-los a qualquer momento?
A diferença, aqui, é basicamente uma: enquanto um cardiopata ou um acidentado tem, em geral, consciência de sua condição -e o medo da morte o faz aceitar cuidados médicos-, o dependente de crack precisa satisfazer sua fissura, fumar mais uma pedra, mesmo sabendo que isso pode lhe custar a vida.
Para esses casos a internação é, mais do que necessária, uma chance para que a pessoa, extremamente fragilizada pelo uso da droga e por todas as consequências nefastas ao seu organismo, possa ao menos se restabelecer, abrindo caminho para a cura de sua dependência.
O governo do Estado de São Paulo está enfrentando na prática e com firmeza a epidemia de crack que se instalou no país. E do jeito mais adequado, uma vez que trata o tema sob os pontos de vista da Justiça, garantindo os direitos dos cidadãos, da assistência social, pela abordagem e acolhimento de dependentes, e, principalmente, da saúde, com forte investimento na ampliação da assistência.
O plantão judiciário que o governo do Estado disponibilizou desde o último dia 21 de janeiro no Cratod (Centro de Referência em Álcool, Tabaco e outras Drogas), com a participação da OAB, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça, com o objetivo de dar maior celeridade às internações compulsórias e involuntárias (previstas em lei de 2001) dos casos mais graves e extremos, foi precedido do fortalecimento da rede assistencial para dependência química no Estado.
Desde 2009, foram implantados no Estado cerca de 700 leitos exclusivos para tratamento de dependentes de drogas no SUS. Desses, 209 foram criados na atual gestão do governador Geraldo Alckmin. Outros 600 deverão ser entregues até o próximo ano, na capital e interior, incluindo um moderno centro especializado em álcool e drogas ligado ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. O investimento total previsto é de R$ 250 milhões.
Não se trata, de maneira nenhuma, de apenas colocar dependentes químicos em leitos hospitalares, mas de um modelo de assistência multidisciplinar, formada por médicos, psicólogos, enfermeiros e terapeutas ocupacionais, com respeito às necessidades individuais, visando à recuperação do paciente e sua reinserção social. Depois do período de internação, é oferecida assistência ambulatorial, seja no próprio serviço ou por intermédio dos Caps-Ad (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas).
Nem todos os casos de uso de drogas demandam internação. A maioria, ao contrário, requer seguimento clínico ambulatorial, com o imprescindível apoio da família. É dever do Estado, no entanto, assegurar todos os meios para preservar a vida dos dependentes, e o governo de São Paulo, sem medo do crack, assume este compromisso com a população.



A banalização de medidas autoritárias
Tratar o crack como epidemia autoriza a arbitrariedade e a violência. Recriar um modelo já tão criticado por pesquisadores e pela luta antimanicomial?
Desde o fim do ano passado, veículos de comunicação têm noticiado a expansão da política de internação compulsória de crianças, adolescentes e adultos usuários de crack no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Tratar o consumo de crack como uma epidemia, além de ser um equívoco de interpretação dos dados epidemiológicos, que não demonstram isto, provoca uma reação social que instaura o medo e autoriza a violência e a arbitrariedade, justificando medidas autoritárias, coercitivas e higienistas.
Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), usar a internação compulsória como medida emergencial para tratamento de drogas revela a falta de cuidado e de atenção à saúde dos usuários, além de reafirmar a falha do Estado na criação e aplicação de políticas públicas.
Acionar políticas emergenciais como internar involuntariamente implica em atualizar modelos de intervenção amplamente criticados por profissionais, pesquisadores na área de ciências humanas e sociais e pelos movimentos sociais, como o da luta antimanicomial.
É preciso superar o mito de que o usuário de drogas é perigoso, perdido, irrecuperável ou um monstro.
Tais ideias provocam uma urgência de respostas mágicas, levam a sociedade a demandar medidas políticas sem a prévia reflexão necessária, justificando e legitimando a violência contra estes indivíduos.
O usuário precisa do cuidado em liberdade, por meio de uma rede intersetorial e de políticas públicas que caminhem para a reinserção na sociedade, não que aumentem as disparidades sociais, a marginalização.
A política pública de saúde já desenvolveu dispositivos clínicos e assistenciais como a redução de danos, os consultórios de rua, os Centros de Atenção Psicossociais Álcool e Drogas (Caps-Ad) e outros recursos que são menos invasivos e violentos. Eles têm mostrado resultados importantes na abordagem e no cuidado com os usuários, respeitando sua autonomia e liberdade.
O modelo de atenção aos usuários de drogas deve ser pautado na lei 10.216 de 2001, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Isso significa que instituições asilares, como as comunidades terapêuticas, não devem ser opção para o tratamento com recursos públicos.
A internação compulsória aparece como algo que resolve magicamente todos os problemas. Com a excessiva propaganda governamental, corre o risco de virar uma prática corriqueira e, portanto, banalizada. Como medida de impacto coletivo, essa política tem se mostrado um fracasso. Os usuários são levados, isolados, medicalizados e depois voltam para um espaço social conturbado, difícil e limitador.
Coerente com o seu compromisso com os direitos humanos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) é uma das 53 entidades que compõem a Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos (FNDDH).
A frente luta pela defesa de uma política sobre drogas no Brasil baseada na garantia dos direitos humanos e sociais -não na repressão policial, em ações higienizadoras e criminalizadoras da pobreza.
O CFP, junto com a frente, considera urgente a discussão da descriminalização das drogas. Falamos do usuário, mas não falamos da política proibicionista. É importante lembrar que medidas como a internação compulsória ajudam a criminalizar e a ampliar o caráter punitivo aos usuários drogas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário