24 de dezembro de 2012

Pasado escravocrata


Tragédia silenciada




O passado escravocrata ainda é pouco discutido no Brasil. Grande parte da população se mostra desinformada e faltam espaços e museus dedicados ao período. Algumas iniciativas no país e um projeto mundial da Unesco tentam mudar essa realidade

Max Milliano Melo
Durante cerca de quatro séculos, os negros no Brasil tinham que permanecer em silêncio. Ao expressarem sua dor e sofrimento, ou suas alegrias e tristezas, eram, muitas vezes, punidos com castigos físicos e psicológicos. Até hoje, o silêncio a que a população negra era submetida surge quando o assunto é escravidão. Discutir o tema é algo delicado, que mexe em feridas ainda abertas. A pobreza, a fome, as epidemias e uma série de mazelas que atingem com mais violência os afrodescendentes estão relacionadas aos séculos de exploração - quando negros não eram considerado humanos - e ao período de abandono que se seguiu à Lei Áurea, em 1888, quando os homens e as mulheres tornados livres foram deixados à própria sorte, sem políticas de promoção de cidadania.
Muita gente que caminha frente ao Conic, no Setor de Diversões Sul, passa alheia ao busto de bronze localizado no meio da praça em frente ao prédio. O homem negro homenageado ali é Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, um dos maiores focos de resistência contra a escravidão. O descaso e o desconhecimento sobre o monumento, localizado no centro da capital do país, é um exemplo do que ocorre no Brasil e em várias outras nações: pouco se estudam e se discutem os reflexos da escravidão.
"Nossa maior tragédia é silenciada", lamenta Eloi Mendes, presidente da Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura que trabalha para a preservação e a promoção da cultura negra no país.
Cabeça erguida
O lamento de Mendes explicita a falta de conhecimento do povo brasileiro sobre um dos mais obscuros momentos da história do país, o último a abolir a escravidão. Não há, por exemplo, museus dedicados à preservação da memória da escravidão. E apenas em 2007 a região da Serra da Barriga (AL), que abrigava o Quilombo dos Palmares, ganhou um memorial e um centro de visitação abertos ao público.
Para Mendes, a compreensão do real significado do período e de suas consequências é importante tanto para as pessoas com ascendência africana - "Não devemos ter vergonha do sofrimento, mas olhar para o passado com a cabeça erguida, sem nos vitimar" - como para a sociedade brasileira. A desinformação, acredita, é um dos pontos que leva à grande resistência de alguns segmentos contra leis que buscam corrigir as desigualdades resultantes do passado de exploração.
Opinião semelhante tem Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), da Universidade de Brasília. "Quando se fala em reparação dos danos da escravidão e em promoção da igualdade racial, é preciso pensar em cinco séculos de abandono que as comunidades negras vêm sofrendo", defende o pesquisador. "Existe um grupo de conservadores que não quer tratar do tema. Olhar a história dos escravos é tratar de uma dor. Precisamos reconhecer que a escravidão não foi um parque de diversões", completa Eloi Mendes.
Reconciliação
Uma das tentativas de mudar esse ponto de vista, em todo o mundo, é desenvolvida desde 1994 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O Projeto Rota dos Escravos tenta resgatar a memória de locais de singular importância para a história do povo negro (veja mapa). "A escravidão foi uma tragédia de impacto global, não apenas para a África, a Europa e a América, mas também para a Ásia e o Oriente Médio. Por isso, é importante que o maior número possível de pessoas conheça essa história", afirma Ali Mussa, diretor da iniciativa. "É necessário que os cidadãos entendam as influências mundiais e as consequências dessa tragédia em todo o mundo contemporâneo. O processo de resgate dessa memória é doloroso, mas contribui para a reconciliação mundial", completa.
Pouca gente sabe, mas a região portuária do Rio de Janeiro é uma peça fundamental no processo de redescoberta do passado brasileiro. A região foi o principal local de desembarque de escravos trazidos da África. Até 1776, a Praça XV, no Centro da capital fluminense, era o ponto onde negros eram comercializados como mercadoria. Depois, o comércio foi transferido para o Cais do Valongo, hoje parte do bairro da Gamboa e recentemente revitalizado. Cerca de 1,2 milhão de pessoas desembarcaram e foram vendidas no local. Há ainda outras regiões do país que tiveram o desenvolvimento profundamente ligado ao período escravocrata, como a região das minas de ouro, que abriga cidades como Ouro Preto (MG), Mariana (MG) e Cidade de Goiás (GO).
Unesco tenta agora chamar mais a atenção para lugares como esses em outras regiões do Brasil e do mundo. "Trabalhamos com apoio a gestores culturais para facilitar a instalação de turismo de memória em torno dos sítios, lugares, monumentos e museus ligados ao tráfico negreiro e à escravidão", conta Ali Mussa. A Década para as Pessoas com Ascendência Africana, que começa no ano que vem, será um momento de reflexão e de resgate da história negra que cada um dos brasileiros carrega. "Espero que todos os países se engajem para valorizar a herança africana que carregam", diz Irina Bokova, diretora-geral da Unesco

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