30 de outubro de 2012

Em 'aula global', Michael Sandel discute moralidade


Brasileiros participaram de debate sobre 'barriga de aluguel' proposto por astro de Harvard

29 de outubro de 2012 | 22h 44



Carlos Lordelo, do Estadão.edu


Tomaz Fiszbaum, aluno de Direito da FGV, interage com Michael Sandel via iPad - PAULO LIEBERT / ESTADÃO
PAULO LIEBERT / ESTADÃO
Tomaz Fiszbaum, aluno de Direito da FGV, interage com Michael Sandel via iPad
“Hoje nós vamos fazer um experimento de tecnologia e educação global”, avisou o professor de Filosofia Política de Harvard Michael Sandel (pronuncia-se Sandél) na sexta-feira, durante a estreia do seu projeto de aulas online em tempo real com participação de estudantes de São Paulo, Nova Délhi, Tóquio e Xangai.
De Harvard, o filósofo fazia perguntas sobre moralidade e chamava os alunos para o debate. Nas classes, estudantes interagiram com Sandel e colegas dos outros países, em inglês, por meio de um aplicativo de iPad. As diversas telinhas da videoconferência apareciam projetadas em um mapa-múndi.
A primeira aula da sala global – haverá outras duas em novembro – ocorreu à tarde no Brasil, mas os asiáticos tiveram de ficar acordados até a madrugada. Graças à série Justice, versão online do seu curso em Harvard que teve mais de 8 milhões de acessos na web, Sandel é um astro na Ásia. Tanto que já tinha feito uma versão piloto das aulas globais incluindo Tóquio e Xangai, de janeiro de 2011 a julho deste ano, com apoio da NHK, TV pública japonesa.
Em São Paulo, as aulas são realizadas na sede da Escola de Direito da FGV, na Bela Vista, região central. A turma selecionada pela FGV tem 24 alunos dos cursos de Economia, Administração e Direito da própria fundação e de Ciências Sociais e Direito da USP. Também foram admitidos dois leitores do Estado, estudantes de Direito, e Ricardo Zeef Berezin, aluno do Curso Estado de Jornalismo que se formou pela Cásper Líbero e cursa Filosofia na USP (veja o relato dele abaixo).
A ideia de hospedar o curso na FGV foi sugerida pelo diretor da Escola de Direito, Oscar Vilhena, quando Sandel esteve no Brasil em agosto. Na época, ele fez seminários em Brasília, Fortaleza e São Paulo e revelou com exclusividade o projeto da classe mundial ao Estado.
Assim como na série de 12 palestras Justice e no best seller Justiça: O que é Fazer a Coisa Certa (editora Civilização Brasileira), Sandel utilizou na aula inaugural casos concretos para discutir dilemas morais e éticos e o valor real das coisas – aquelas que o dinheiro, em tese, não deveria comprar. No primeiro exemplo, colocou em debate a questão de mulheres contratadas como barrigas de aluguel.
Casal. O filósofo, também autor de O que o Dinheiro Não Compra – Os Limites Morais do Mercado (Civilização Brasileira), contou aos participantes a história de um casal americano que não podia ter filhos e pagou US$ 10 mil a uma mulher para gerar uma criança fertilizada pelo pai. Quando o bebê nasceu, a mãe de aluguel quis ficar com ele e apelou à Justiça para não entregá-lo. “Se você fosse o juiz e precisasse decidir a coisa certa a fazer, do ponto de vista moral, o que faria?”, perguntou Sandel aos estudantes. “Quem romperia o contrato?”
Uma garota de Nova Délhi ponderou que o consentimento não era “verdadeiramente livre”, porque a mãe não saberia como se sentiria quando o filho nascesse. O argumento foi rebatido por um jovem de Harvard. “O contrato deveria ser mantido porque não houve coerção. A mãe de aluguel não foi forçada a assinar o documento. Não importa se ela mudou de ideia depois”, disse o aluno, bem à vontade, com o boné virado para trás.
Sandel tomou a palavra: “Esta questão envolve dois argumentos fortes. A pobreza pode ter sido o motivo pelo qual a mulher aceitou o contrato. E o outro é o de que a capacidade reprodutiva das mulheres não pode ser colocada à venda.”
Outro aluno de Harvard pediu para falar. Disse que bebês não podem ser vistos como produto à venda. “Isso é moralmente inaceitável.” Sandel jogou para a plateia internacional: quis saber quem também era contra a “comoditização” de bebês.
A maioria dos alunos de Tóquio concordou com o americano. Em Xangai, um jovem levantou a mão meio envergonhado, porque discordava da ideia. Ele foi à câmera do iPad e disse que o argumento de que proibir a venda da capacidade reprodutiva das mulheres não era “persuasivo”. “A mulher pode ter outro filho se quiser”, afirmou. No entanto, posicionou-se contra a venda de bebês. “Eles são seres humanos e têm consciência.”
Sandel resolveu provocar o chinês: “Mas o contrato foi fechado antes de o bebê nascer”, disse. O estudante gaguejou, deu risada e perdeu o rebolado.
Uma aluna de Harvard botou lenha na fogueira em seguida. Argumentou que as mulheres que “vendem” a barriga para gerar uma criança estão, na verdade, oferecendo um serviço, e não um bebê como produto. “As mulheres deveriam ter a chance de escolher vender ou não essa capacidade reprodutiva de acordo com sua própria consciência”, afirmou. “É degradante não deixá-las decidir o que fazer com seus corpos.”
Foi quando São Paulo entrou no debate. Disse André Arcas, estudante de Direito da USP e um dos leitores do Estado selecionados para participar do projeto: “A ligação entre mãe e filho precisa ser considerada e o contrato, anulado”.
Outsourcing. Sandel, então, levou a discussão a outro nível. Deu um panorama de como funciona a gravidez de aluguel no mundo e disse que, hoje, uma americana recebe entre US$ 20 mil e US$ 25 mil para gerar uma criança, enquanto na Índia o preço cai para US$ 7 mil, em média. A questão, agora, era a moralidade da terceirização da gravidez em escala global.
Em São Paulo, só uma garota se mostrou a favor desse tipo de comércio. Uma aluna de Xangai quis falar contra o outsourcing de úteros. “Por que uma mulher custa mais barato que outra na hora de gerar uma criança? É por causa de suas condições econômicas, da sua cor da sua pele?”
A voz contrária veio de Harvard. “Em um mercado, cada um tem o direito de escolher o preço pelo qual vende um serviço, no caso, a barriga”, disse um rapaz. A chinesa retrucou: “A pobreza já não exerce uma pressão coercitiva na hora de a mulher escolher esse preço?”
Sandel retomou as rédeas da discussão e a encaminhou para as considerações finais, depois de cerca de uma hora de aula. Propôs aos estudantes que pensassem no quanto a desigualdade socioeconômica determina a liberdade da mulher na hora de “vender” ou não sua barriga para carregar o bebê de outras pessoas. E já pautou o próximo encontro, na sexta-feira, no qual os alunos também vão discutir como atribuir valor a bens não materiais e até que ponto a necessidade financeira justifica uma ação.
Socrático. Coordenador do projeto de Sandel no Brasil, o professor de Ética, Teoria do Direito e Filosofia Política da FGV e da USP Ronaldo Macedo elogiou o método do colega de Harvard. “Ele consegue fazer um trabalho de bom nível com linguagem acessível”, diz Ronaldo. “Sandel propõe um ensino de ética mais substantivo: não quer saber como a lei dos diferentes países lida com a questão da barriga de aluguel, mas se os estudantes acham a prática certa ou não.”
Segundo Ronaldo, os cursos de Direito do Brasil, de maneira geral, pautam o ensino de ética pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “É um método pouco crítico. É possível debater questões morais de maneira profunda e reflexiva sem ser erudito.”
O professor também destaca o fato de que as perguntas de Sandel transcendem o problema que é colocado nos casos sob análise. “Várias questões incidem sobre o tema da gravidez de aluguel, como a autonomia do indivíduo e os limites do mercado.”
Para o mestrando em Direito Constitucional da USP Gustavo Lucredi, um dos alunos da classe global, o trabalho de Sandel tem relação com o que ele pesquisa: a argumentação dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre questões que envolvem direitos fundamentais. “Às vezes os ministros são incongruentes. Começam com uma linha de pensamento e a distorcem para chegar ao ponto que defendem.”
Fã de Sandel, a aluna de Direito da PUC-SP Mariana de Castro Abreu definiu o tema de sua monografia após ler Justiça. No trabalho, ela explorou a moralidade do consentimento em casos de tráfico de pessoas. Quando soube da vinda do professor de Harvard a São Paulo em agosto, escreveu para a consultoria Amana Key, organizadora do evento, falando de sua pesquisa e ganhou um convite. Nas aulas globais, inscreveu-se como leitora do Estado e foi selecionada pela FGV. “Sandel sempre traz novos elementos que me fazem refletir sobre posições morais que eu achava que já estivessem estabelecidas na minha cabeça.”
Aluna de Ciências Sociais da USP, Juliana Moura Bueno gostou de conhecer as diferenças entre os países no que se refere a argumentos morais. “Ficou clara a diferença de pensamento de um país católico como o nosso, um conservador, como a China, e um liberal, como os Estados Unidos.”
Rafael Abdouch, da Direito GV, destacou o potencial do uso da tecnologia na educação. “Seria inimaginável algum tempo atrás ter pessoas de diferentes partes do mundo discutindo como se estivessem frente a frente”, disse. “A atividade foi dinâmica e mostra que a tecnologia está aí para facilitar.”
Quem quiser ter um gostinho de ser aluno de Sandel pode assistir à série Justice com legendas em português pelo Veduca (www.veduca.com.br), portal que publica a aulas de cursos universitários de todo o mundo. / COLABOROU LUÍS LIMA, ESPECIAL PARA O ESTADO


Discórdia sob controle
Antes de começar, Sandel faz um teste: antecipa o tema da aula e pede aos alunos que opinem. O primeiro a falar, do Japão, não tira os olhos de suas anotações. “Permita-me uma sugestão”, diz o professor. “Não organize os pensamentos tão antecipadamente.” O segundo, da China, discorre sobre leis de seu país, mas é interrompido. “Não queremos discutir o que a lei diz, e sim como ela deveria ser.” Sandel faz observações de forma delicada. Não quer bloquear o debate, só garantir que o jogo ande.
No princípio, os brasileiros parecem intimidados pelo idioma e pela câmera, mas logo a conversa esquenta. O professor organiza os argumentos e incentiva a discórdia. “É degradante vender sua capacidade reprodutiva”, diz uma chinesa. “Degradante é a mulher não poder decidir sobre seu próprio corpo”, rebate uma americana. “Um bebê não é um produto”, enfatiza um japonês. O tempo, no entanto, acaba. Sandel conseguiu o que queria: botar fogo na aula. Terá a tarefa de reduzi-lo no próximo encontro. / RICARDO ZEEF BEREZIN, ALUNO DO CURSO ESTADO DE JORNALISMO

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