27 de julho de 2012

PAULO CESAR SOARES , Ciência, tecnologia e ainda a vaca A tecnologia não é, como dito, um "efeito colateral" da ciência básica. Sem investimento direto em inovação, a patente surgirá em outro país, em outra época Li com muita atenção o artigo do colega físico Ivan Oliveira, "Ciência, tecnologia, inovação, vaca e leite", publicando aqui em 19 de julho. Ele defende que a inovação é "efeito colateral" da ciência básica e que, por isso, é necessário investir na descoberta científica. Novos produtos e processos virão como consequência. É preciso observar, porém, que, ao longo da civilização industrial, o desenvolvimento foi se aproximando da descoberta. Assim, há 150 anos uma descoberta científica geraria um produto novo cerca de cem anos depois. Já há 50 anos, este gap era de cerca de dez anos. No final do século, a tecnologia chega apenas alguns anos atrás da descoberta científica. O fato interessante, então, é que no passado distante a pesquisa científica, visando a descoberta, e a pesquisa em tecnologia, visando a invenção, não mantinham relação de importância. Nas duas últimas décadas, porém, a invenção se aproximou tanto da descoberta que nos grandes centros as duas fases do conhecimento praticamente se uniram. Isto significou que a pesquisa científica se associou à tecnológica -é preciso que seja assim. Os exemplos listados por Oliveira ilustram de uma certa forma a antítese da proposição do autor. Ele nos conta que cristais líquidos foram descobertos em 1888 pelo botânico Friedrich Reinitzer na Universidade de Praga. Mas tanto Reinitzer quanto a sua instituição certamente não tiveram um papel relevante no desenvolvimento de monitores de TV, computadores ou tablets. E, claro, não receberam patentes por isso. Outro exemplo que ele cita: Einstein publicou em 1916 a relatividade geral. Hoje, o GPS usa a sua teoria para funcionar corretamente. Mas o físico não teve nada a ver com isso. Ou seja, não foram os autores ou as instituições onde ocorreram as descobertas científicas que foram os responsáveis pelos inventos. Não foram eles os beneficiários dos seus resultados. Foram terceiros, em épocas e locais diferentes. Isso significa que a pesquisa científica sozinha não gera o produto que se traduz em benefício e progresso da humanidade. Ela pode surgir em outra época, em outro país, para outros beneficiários. Ou seja: pode ser que a sociedade que financiou a pesquisa científica básica, assim como o próprio cientista responsável por ela, tenham inclusive de pagar royalties para usar um produto tecnológico que foi criado em função dos seus estudos. Essa tem sido a grande diferença entre as políticas para a ciência e a tecnologia nos países desenvolvidos e nos dependentes. No Brasil, por exemplo, como a indústria pouco investe em pesquisa, essa responsabilidade fica para a universidade. Os parcos recursos financeiros governamentais têm sido aplicados preferencialmente em descobertas científicas (pesquisa básica), cerca de 70%. Apenas 30% são direcionados para invenções e inovação (pesquisa aplicada). Ao contrário, em países como os EUA os recursos são utilizados preferencialmente em pesquisas aplicadas, ainda que provindos em grande maioria de fundos do governo, mas preferencialmente aplicados pela indústria. Assim, só 2010 as empresas americanas IBM e Samsung Electronics registram sozinhas respectivamente 5896 e 4551 patentes. O Brasil inteiro, no ano de 2011, fez 572 pedidos por meio do Tratado de Cooperação em Patentes. Então, conclui-se que as pesquisas básicas e aplicadas devem andar de mãos dadas para que o conhecimento científico seja revertido em benefício da sociedade. Devemos refrear a ideia de que basta ocorrer a descoberta científica para que a aplicação em invenção e inovação venham de brinde. Seria, complementando o brilhante físico Guido Beck citado, necessário dizer que não basta cuidar da vaca para se ter o leite. PAULO CESAR SOARES, 69, doutor em geociências, é professor titular de geologia na Universidade Federal do Paraná


Folha de S.Paulo,27/7/2012

A tecnologia não é, como dito, um "efeito colateral" da ciência básica. Sem investimento direto em inovação, a patente surgirá em outro país, em outra época

Li com muita atenção o artigo do colega físico Ivan Oliveira, "Ciência, tecnologia, inovação, vaca e leite", publicando aqui em 19 de julho.
Ele defende que a inovação é "efeito colateral" da ciência básica e que, por isso, é necessário investir na descoberta científica. Novos produtos e processos virão como consequência.
É preciso observar, porém, que, ao longo da civilização industrial, o desenvolvimento foi se aproximando da descoberta.
Assim, há 150 anos uma descoberta científica geraria um produto novo cerca de cem anos depois. Já há 50 anos, este gap era de cerca de dez anos. No final do século, a tecnologia chega apenas alguns anos atrás da descoberta científica.
O fato interessante, então, é que no passado distante a pesquisa científica, visando a descoberta, e a pesquisa em tecnologia, visando a invenção, não mantinham relação de importância.
Nas duas últimas décadas, porém, a invenção se aproximou tanto da descoberta que nos grandes centros as duas fases do conhecimento praticamente se uniram. Isto significou que a pesquisa científica se associou à tecnológica -é preciso que seja assim.
Os exemplos listados por Oliveira ilustram de uma certa forma a antítese da proposição do autor.
Ele nos conta que cristais líquidos foram descobertos em 1888 pelo botânico Friedrich Reinitzer na Universidade de Praga. Mas tanto Reinitzer quanto a sua instituição certamente não tiveram um papel relevante no desenvolvimento de monitores de TV, computadores ou tablets. E, claro, não receberam patentes por isso.
Outro exemplo que ele cita: Einstein publicou em 1916 a relatividade geral. Hoje, o GPS usa a sua teoria para funcionar corretamente. Mas o físico não teve nada a ver com isso.
Ou seja, não foram os autores ou as instituições onde ocorreram as descobertas científicas que foram os responsáveis pelos inventos. Não foram eles os beneficiários dos seus resultados. Foram terceiros, em épocas e locais diferentes.
Isso significa que a pesquisa científica sozinha não gera o produto que se traduz em benefício e progresso da humanidade. Ela pode surgir em outra época, em outro país, para outros beneficiários.
Ou seja: pode ser que a sociedade que financiou a pesquisa científica básica, assim como o próprio cientista responsável por ela, tenham inclusive de pagar royalties para usar um produto tecnológico que foi criado em função dos seus estudos.
Essa tem sido a grande diferença entre as políticas para a ciência e a tecnologia nos países desenvolvidos e nos dependentes.
No Brasil, por exemplo, como a indústria pouco investe em pesquisa, essa responsabilidade fica para a universidade. Os parcos recursos financeiros governamentais têm sido aplicados preferencialmente em descobertas científicas (pesquisa básica), cerca de 70%. Apenas 30% são direcionados para invenções e inovação (pesquisa aplicada).
Ao contrário, em países como os EUA os recursos são utilizados preferencialmente em pesquisas aplicadas, ainda que provindos em grande maioria de fundos do governo, mas preferencialmente aplicados pela indústria.
Assim, só 2010 as empresas americanas IBM e Samsung Electronics registram sozinhas respectivamente 5896 e 4551 patentes. O Brasil inteiro, no ano de 2011, fez 572 pedidos por meio do Tratado de Cooperação em Patentes.
Então, conclui-se que as pesquisas básicas e aplicadas devem andar de mãos dadas para que o conhecimento científico seja revertido em benefício da sociedade. Devemos refrear a ideia de que basta ocorrer a descoberta científica para que a aplicação em invenção e inovação venham de brinde.
Seria, complementando o brilhante físico Guido Beck citado, necessário dizer que não basta cuidar da vaca para se ter o leite.
PAULO CESAR SOARES, 69, doutor em geociências, é professor titular de geologia na Universidade Federal do Paraná

Nenhum comentário:

Postar um comentário