18 de abril de 2011

Bullying,violencias nas escolas,Realengo: Veja


Revista Veja/BR
Domingo, 17 de abril de 2011

  Entre outras singularidades trágicas, o massacre de Realengo escancarou um fenômeno mais geral que atormenta milhões de estudantes em todo o país. Para as vítimas de agressões físicas e xingamentos, as marcas podem se perpetuar por toda a vida


RENATA BETTI E ROBERTA DE ABREU LIMA


São muitas, irrepetíveis, inexplicáveis, inevitáveis e sombrias as motivações do covarde assassino de crianças de Realengo, no Rio de Janeiro. Seu funesto testamento, feito em cartas e vídeos, cita, porém, um fenômeno que, se não produz automaticamente assassinos e desajustados sociais, atormenta diariamente milhões de crianças - o bullying, termo em inglês popularizado no Brasil. Sob seu amplo significado abriga-se todo tipo de tortura física e psicológica de que são vítimas as crianças que têm como algozes seus próprios colegas. Numa série de vídeos que Wellington Menezes de Oliveira gravou enquanto planejava o ataque, ele disse que ia matar para expiar as humilhações que sofrera no colégio. Evidentemente, por piores que tenham sido as agressões impingidas a ele, elas não justificam nem explicam todo o bárbaro episódio, produto de uma mente perversa e doentia. O caso reforça, porém, a ideia de que o bullying não pode continuar a ser negligenciado pelas escolas brasileiras nem pelos país. Em um lugar que deve funcionar como extensão da própria casa, alguns estudantes se tornam alvo preferencial de xingamentos, ameaças e agressões físicas. Não é uma violência qualquer. O bullying é executado pelos pares, ou seja, pelo grupo ao qual a criança ou o adolescente precisa pertencer e no qual deve se sentir um igual como parte do processo saudável de amadurecimento psicológico e de preparo para a vida adulta. Sentir-se preterido nesse momento crucial da vida é um castigo cujas marcas podem ser mitigadas, mas nunca serão esquecidas. Por essa razão - e, principalmente, por ser um problema que pode ser prevenido, atenuado e até evitado pelas escolas - o bullying merece uma atenção especial de diretores, professores, familiares e de toda a comunidade escolar.

Sim, o fenômeno tem raízes imemoriais. Desde que o mundo é mundo, os seres humanos diferentes são alvo de troças e covardias. Mas, no atual estágio da civilização, tornam-se inaceitáveis as desculpas clássicas para não fazer nada contra a tortura psicológica e física de crianças e adolescentes que se destacam da média por algum defeito - gagueira, uso de óculos com lentes "fundo de garrafa", dificuldade de locomoção, obesidade mórbida ou magreza excessiva - ou até pelo desempenho acadêmico estelar, que também pode servir para atiçar a inveja e a vingança dos medíocres. Um levantamento de abrangência nacional mostra claramente que o bullying não se limita a casos isolados. De acordo com dados compilados pela ONG Plan, presente em 66 países, um de cada três estudantes brasileiros de ensino fundamental revela ser ou ter sido alvo de "maus-tratos" por parte de colegas dentro da escola. Pela persistência das agressões, um de cada dez casos configura o bullying. Para desespero das vítimas. muito frequentemente as ameaças e intimidações são alimentadas via internet, tornando-as um tormento sem fim. Os números são expressivos - e ainda estão subestimados. Coordenadora do estudo. a educadora Cleo Fante chama atenção para um segundo aspecto: "O problema é maior do que as estatísticas fazem supor, já que a maioria das vítimas tem medo e vergonha de se identificar".

Parte do grupo que ilustra as páginas desta reportagem preferiu não mostrar o rosto nem dar o nome. Alguns são ainda hoje vítimas de bullying. Para a maioria. a experiência detonou a autoestima e a capacidade de travar relacionamentos saudáveis. Algo que eles foram recuperando à custa de ajuda psicológica - e tempo. As más lembranças, no entanto, sempre afloram, em menor ou maior grau. "Até hoje, quando escuto um grupo dando risada do meu lado, meu coração dispara e me lembro do horror que eram os tempos de colégio", conta o administrador de empresas C.L. 28 anos, que por quase uma década foi alvo de humilhações em três escolas particulares numa cidade do litoral paulista. Era só mudar de colégio para esbarrar com alguém que já conhecia sua fama de "certinho da turma", e o bullying recomeçava. Ele reconhece, com um discurso típico dos que já enfrentaram a situação: "Acho que nunca vou estar 100% curado".

Conditos entre crianças e adolescentes não apenas são comuns como esperados. Trata-se de uma fase de inseguranças. em que a identidade está sendo formada e a necessidade de autoafirmação se impõe. E justamente nesse ambiente que o bullymg prolifera. "Humilhar os outros era uma forma de ganhar poder no grupo", diz o publicitário T. S. , 25 anos, que conta ter passado todo o período como estudante de colégios particulares de São Paulo no papel de agressor. No lado das vítimas, há um grupo heterogêneo, que sempre destoa da maioria por alguma peculiaridade. Figuram entre os alvos preferenciais alunos novatos, os melhores da turma, os excessivamente tímidos e também aqueles cujos traços físicos fogem do padrão Nathan Ferreira de Almeida, 13 anos, chamou atenção por ser calado, franzino e ter um excelente boletim. Chegava à escola e ouvia "frouxo", "chorão". Dois anos atrás, depois de uma surra da qual ele saiu repleto de hematomas, os pais decidiram mudar o menino de escola. Agora ele está bem. "Não quero que o filho de ninguém sofra o mesmo que o meu", diz a mãe, Cristiane Almeida, 33 anos, hoje à frente de uma ONG anti-bullying.

Cerca de 80% das escolas brasileiras não punem valentões agressores. "Elas ainda não entenderam sua responsabilidade na repressão ao bullying", diz a consultora pedagógica Valeria Rezende da Silva. A experiência internacional sinaliza que iniciativas bem simples e aplicadas de forma enérgica no colégio têm impacto decisivo. Alguns bons e isolados exemplos surgem no Brasil. "Quebramos o silêncio ao trazer os pais à escola para falar sobre o assunto e reunir os agressores, as vítimas e os alunos que testemunham a violência para produzir, juntos, uma cartilha anti-bullying", conta Tânia Maselli. coordenadora da escola municipal carioca Fernando Tude de Souza. referência na área. A mudança de cultura é o primeiro passo. O segundo pressupõe punição aos agressores por parte da escola. "Não existe combate efetivo ao bullying sem regras nem fiscalizadão", conclui a especialista americana Dorothy Espelage.

Falta ao Brasil uma lei federal destinada a castigar os autores desse crime. Quando chegam à Justiça. os casos são enquadrados em infrações previstas no Código Penal como injúria, difamação e lesão corporal O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) pode ser acionado, mas, na pratica, é pouco eficaz "Os juízes das varas da Infância e Juventude muitas vezes não dão prioridade aos casos de bullying por julgá-los de menor gravidade', diz o advogado Marcel Leonardi professor da Fundação Getulio Var2as O desfecho da história da estudante Julia Affonso, 15 anos, é exceção. Vítima de bullying oito anos atrás, ela conseguiu na Justiça do Rio que a escola particular na qual estudava lhe pagasse indenização no valor de 35000 reais "Nada vai fazer apagar da minha cabeça lembranças tão dolorosas", diz ela.

Criador no início da década de 70 do termo bullying (que se origina do inglês bully, "valentão"), o sueco Dan Olweus constatou uma relação direta entre as agressões e o aumento de transtornos psicológicos nos estudantes - mas não necessariamente na produção de assassinos. "No caso de Wellington, provavelmente as humilhações funcionaram como gatilho de um gravíssimo distúrbio psiquiátrico', diz Gustavo Teixeira, psiquiatra e autor do recém-lançado Manual Antibullying. Sem o bullying, a brasa assassina enterrada na mente transtornada de Wellington teria encontrado outros gatilhos? Certamente, sim Mas coibir as agressões aos mais frágeis na idade mais vulnerável deveria já ser um objetivo de toda boa escola - mesmo que o massacre de Realengo nunca tivesse ocorrido.

COM REPORTAGEM DE ALEXANDRE SALVADOR, IGOR PAULIN, HELENA BORGES, MALU GASPAR E VINICIUS SEGALLA

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