23 de janeiro de 2011

Homicios,tráfico e vício

| Diário da Região - S. J. do Rio Preto - SP
Tráfico e vício causam 79 homicídios
 

Allan de Abreu, Graziela Delalibera e Maria Stella Calças Thomaz Vita Neto

Lucy Moreira na varanda de casa no Solo Sagrado; no alto, frase escrita pelo filho Maicon (detalhe) meses antes de morrer
A dona de casa Lucy Moreira recebeu o pior presente possível no último Dia das Mães: o corpo do filho Maicon Júnior Moreira Ribeiro, 21 anos, estirado na calçada da casa, no Solo Sagrado, em Rio Preto, com três tiros de pistola calibre 380 na cabeça, peito e perna. A morte foi instantânea. "Era madrugada e ele estava chegando de bicicleta em casa quando passou um rapaz de moto e atirou. Só ouvi o barulho e corri para a frente de casa. Na hora as pernas ficaram bambas, desmaiei."
Viciado em maconha e crack aos 12 anos e traficante desde os 16, Maicon pagou com a vida uma disputa por bocas de fumo entre gangues do Solo Sagrado e do Jardim Antunes, bairros vizinhos da zona norte. Era o segundo filho que Lucy perdia na guerra do tráfico. Em setembro de 2006, outro filho, Eder Fernando Moreira, 20 anos, também foi assassinado com 11 tiros na calçada de casa, no meio de uma disputa de grupos de traficantes rivais do Solo. "Hoje a gente cria filho para morrer por causa de droga."
A estatística dá razão a Lucy. Nos últimos cinco anos, de acordo com a polícia, 79 pessoas foram assassinadas nas quatro principais cidades da região, Rio Preto, Catanduva, Votuporanga e Mirassol, devido às drogas. Só em Rio Preto foram 42 homicídios no período. Os crimes têm motivações diversas - dívida de viciados com traficantes, gangues rivais no tráfico ou mesmo roubo seguido de morte para financiar o comércio de entorpecentes. Todos, porém, têm a droga como pano de fundo.
"A relação entre droga e violência é direta e cada vez mais presente em Rio Preto", afirma o coronel Gilmar Peres Torres, comandante do 17º Batalhão da Polícia Militar. Isso se deve às próprias características do narcotráfico, explica o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor do estudo "Mapa da Violência: anatomia dos homicídios no Brasil". "Como um poder paralelo, o tráfico busca se impor por meios violentos no território que ocupa", diz.
Os personagens desse bangue-bangue no submundo das drogas são quase sempre jovens. Dos 57 assassinados pelas drogas na região entre 2006 e 2010 cuja idade foi identificada pela reportagem, 30 têm entre 16 e 25 anos. Quase sempre são adolescentes com perspectivas econômicas e culturais reduzidas. Segundo Waiselfisz, 20% dos 35 milhões de adolescentes brasileiros não trabalham e não estudam.
"Enquanto os caminhos legais estão todos fechados, existe uma forte pressão social pelos bens de consumo, o tênis, a roupa de grife. Se não há meios legítimos de acesso a esses bens, o tráfico se torna um caminho válido, quase natural, e o uso de drogas uma válvula de escape", diz o sociólogo.
Foi o que aconteceu com Fábio dos Santos, assassinado aos 27 anos com três tiros no fim do ano passado na Morada Campestre, zona leste de Rio Preto. Mesmo nascido em uma família evangélica, começou a fumar maconha por volta dos 15. Aos 22, conheceu a pedra de crack. Entrou de cabeça no vício e passou a dever para traficantes, até ser assassinado por um deles. O pedreiro deixou dois filhos, um menino de 4 anos e uma bebê de nove meses. A avó, Maria de Jesus dos Santos, 55 anos, diz que o garoto chora a ausência do pai. "É difícil demais para a família". No Solo Sagrado, Lucy Moreira entrou em depressão depois da morte do último filho. "Vivo à base de calmante.
Tanto o Maicon quanto o Fernando davam trabalho, eram rebeldes demais, mas tinha amor neles. Dói muito perder dois filhos para o tráfico." Na varanda dos fundos da casa, a lembrança de Maicon permanece viva nos caibros do telhado, onde, poucos meses antes de morrer, pintou com tinta branca os epítetos que marcaram seu estilo de vida: "Moleque doido" e "Vida louca".
Saída é pela educação
A educação é o único instrumento social capaz de quebrar o ciclo entre as drogas e a violência, na opinião do sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz. "Trata-se do melhor instrumento de inclusão social, capaz de tirar o jovem do caminho das drogas e oferecer renda legítima a ele." O especialista cita dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), para o qual entre 30% e 40% da diferença de renda do brasileiro se justifica pelo diferentes níveis educacionais.
O problema, diz, é que a educação no Brasil está em nível classificado por ele como indigente. "Conseguimos universalizar o ensino fundamental, mas e o ensino médio? Enquanto se investir apenas na repressão ou na discussão da redução da maioridade penal, vamos apenas enxugar gelo." Outra saída, segundo o pesquisador da USP Marcelo Batista Nery, é investir em políticas públicas de tratamento da dependência. "Hoje são irrisórios os locais que cuidam de viciados mantidos pelo estado. A maioria está nas mãos de ONGs."
Para o promotor da Infância e Juventude de Mirassol, José Heitor dos Santos, a prevenção das mortes em decorrência do tráfico ou do vício é possível por meio de projetos sociais para tirar crianças das ruas no horário em que não estão na escola. "Aliado a isso, os pais precisam estar mais presentes", observa o promotor. "O tráfico está aliciando os menores, que não entregam o traficante. Quando um menor chega na delegacia hoje, já tem um advogado para o defender. A ameaça de morte existe e não é folclore, e o crime está realmente organizado."
Guilherme Baffi
Luís está na Fundação Casa depois de assassinar viciado
Traficante matou viciado por dívida
Internado há dez meses na Fundação Casa de Rio Preto, Luís (nome fictício), 18 anos, já vivenciou muitas experiências violentas em meio às drogas. Submetido a outras medidas socioeducativas, como a liberdade assistida pela qual passou por duas vezes, o rapaz está cumprindo pena na Fundação por homicídio.
Luís quase não fala da pessoa que ele e mais quatro amigos mataram. "Ele chamava Antonio e era viciado, nos devia dinheiro", diz. A quantia e como o homem foi morto, Luís não conta. O adolescente, que agora diz querer mudar de vida, fala apenas em arrependimento. "Podia ser R$ 1 milhão a dívida. Hoje eu vejo que nada vale uma vida."
Filho de uma cozinheira, Luís cresceu em Tanabi, sem muito contato com o pai e tendo como exemplo o padrasto, preso em 1998 por assalto e novamente em 2008 por tráfico. "Ele (o padrasto) ficou só 4 meses em liberdade e agora tem que cumprir pena até 2021."
A vida do menor não foi fácil. Aos 15 anos ainda cursava a 4ª série e ajudava a mãe a cuidar dos outros quatro irmãos. Aos 16, por influência dos amigos, começou a usar maconha e logo em seguida, cocaína. Incentivado por tios, que atuam no tráfico, Luís começou a traficar. Dos 16 aos 18, se envolveu em brigas - motivo das duas vezes que passou pela liberdade assistida -, e também na morte do seu desafeto.
Hoje, ele e dois dos quatro companheiros que também participaram do assassinato dividem um quarto na Fundação Casa de Rio Preto - os outros dois estão na unidade de Mirassol. Agora, o sonho é terminar os estudos e cursar uma faculdade. "Já cheguei na oitava série e quero cursar medicina", afirma. Além disso, o rapaz diz que pretende também ajudar outras pessoas na mesma situação pela qual passou. "Se eu fui resgatado, outros também podem ser, e eu quero ajudar."
Guilherme Baffi
R.F.S. exibe mãos com cicatrizes das brigas no narcotráfico
'Só não morri ainda porque não era a hora'
Quando as drogas não matam pela bala ou por overdose, deixam marcas no corpo por toda a vida. R.F.S., 24 anos, de Nipoã, exibe uma coleção de cicatrizes, cada uma motivada por um episódio da violência do tráfico. Com 11 anos ele já era viciado em maconha. Aos 16, foi internado na Fundação Casa (antiga Febem) por roubo e tentativa de homicídio. Um ano depois, solto novamente, conheceu o crack, e mergulhou de vez no tráfico. "Foi um caminho sem volta na minha vida", resume.
Em 2003, no auge da guerra entre gangues rivais de traficantes em Mirassol, levou um tiro na boca. A bala arrancou dois dentes e se alojou na nuca. "Só não morri ainda porque não era a hora." Cinco anos depois, também em Mirassol, no bairro Bela Vista, o rapaz se meteu em uma briga entre o traficante Anderson Rodrigues da Silva, o Pezão, e um viciado em cocaína endividado. Levou uma facada na nuca e outras duas em cada uma das mãos - o corpo ainda exibe as marcas. Por conta disso, R.F.S. perdeu o controle sobre o dedo mindinho da mão direita. "Ele estava muito doido, violento. Depois me pediu desculpas. A gente era colega."
As marcas não cessaram a vida criminosa do rapaz. Em 2010, foi preso após assaltar a casa de um empresário de Mirassol, no ano anterior. Passou dois meses no Centro de Detenção Provisória (CDP) em Rio Preto, até agosto, quando saiu e foi morar com os irmãos em Nipoã. "Quero sair dessa vida, preciso de sossego. Deus não faz milagre toda hora. A gente não pode abusar da sorte."
Hamilton Pavam
M.D. perdeu a perna esquerda em acidente na rodovia BR-153
Acidente
M.D., 37 anos, só venceu o vício na cocaína depois de perder a perna esquerda em acidente na rodovia BR-153, em Rio Preto. "Cheirava desde os 15 anos. Por causa da dependência, perdi o emprego de eletricista, me afastei da família. Só importava a droga."
O auge do vício veio em uma manhã de dezembro de 2009. "Tinha cheirado muito no dia anterior, e acordei na fissura pela droga, precisava cheirar mais." Como a irmã se negou a dar dinheiro, M.D. conseguiu R$ 20 com um amigo que morava ao lado da BR. Quando foi atravessar a estrada, foi atropelado. "Estava tão doido que não vi o caminhão que vinha na pista."
O rapaz teve a perna decepada pelo pneu do veículo. Ficou quatro dias em coma no Hospital de Base (HB) em Rio Preto. "Quando o médico me disse que tinha perdido a perna e tirou o lençol de cima de mim, entrei em desespero. Não parava de chorar. Acho que foi aí que percebi a burrada em que havia me metido."
Logo após ter alta, M.D. ficou seis meses internado no Lar São Francisco, que trata dependentes químicos em Jaci. Saiu curado do vício, e agora pleiteia aposentadoria no INSS por invalidez. "Tem dia que a vontade da droga vem com tudo, mas estou decidido a parar de vez. Não quero mais essa vida para mim."
Fotos: Reprodução
No sentido horário, A.M., irmã de Fernando, Wellington dos Santos Lucas, o Pepeu, lápide do túmulo de Lucas, morto em janeiro de 2009, Luciano Fábio Azenha, estudante de farmácia, e Fernando, que matou dois na guerra do tráfico de Mirassol
Guerra entre gangues mata 6 em Mirassol
A disputa entre gangues de traficantes de dois bairros da periferia de Mirassol provocou seis assassinatos desde 2008. A escalada de violência tem crescido - só nos últimos 90 dias foram três mortes - e promete novos homicídios, uma vez que a polícia investiga duas listas de cada facção que totalizam seis pessoas marcadas para morrer.
"A violência do tráfico chegou a um nível inédito na cidade", diz o delegado-titular do 1º Distrito Policial de Mirassol, Eder Galavotti. Quem iniciou a série de assassinatos foi Anderson Rodrigues da Silva, o Pezão, viciado que, para pagar dívidas de droga, tornou-se pistoleiro dos traficantes do bairro Souza. A primeira missão foi matar Lucas Augusto da Costa Silva, 15 anos, que estaria invadindo bocas de fumo no Souza. A vítima levou um único tiro fatal na cabeça, bala calibre 38, na praça central da cidade, na véspera do Natal de 2008.
Três meses depois, Marco Rodrigues Nogueira, traficante do São Bernardo, é assassinado. A polícia suspeita de que a morte tenha sido encomendada a Pezão pelos traficantes do Souza, mas não conseguiu reunir provas para indiciá-lo. Em 3 de novembro, Pezão executou Wellington dos Santos Lucas, o Pepeu, 22 anos, com dois tiros na cabeça, no bairro Bela Vista - Pezão acusava a vítima de dedurá-lo à polícia por roubar empresa de Mirassol para financiar o tráfico. "Ele chamou o Pepeu para fumar uma pedra em uma casa abandonada, e atirou pelas costas. Foi covardia", afirma a serviços gerais Cláudia dos Santos Lucas, 27 anos, irmã de Pepeu.
Lucas e Pepeu eram amigos de Fernando (nome fictício), 17 anos. Apesar da pouca idade, o adolescente já era dono de duas bocas de fumo do Beija-Flor e também braço armado dos traficantes do bairro. "A molecada ligava para ele pedindo emprego nas bocas", diz o delegado. A vingança não tardou. Vinte e dois dias após a morte de Pepeu, Fernando armou uma emboscada para Pezão. Ele e Maxwel Pereira Gonçalves, 19 anos, descarregaram dois revólveres 38 contra o rival - os grupos rivais pareciam combinar apenas no calibre da bala utilizada nos crimes. Seis tiros atingiram Pezão, que morreu no local.
Com a morte do traficante, a guerra entre os bairros deu uma trégua, rompida em 24 de outubro do ano passado, quando Fernando e um menor mataram com um revólver calibre 38 o estudante de farmácia Luciano Fábio Azenha, 23 anos, investigado pela polícia por envolvimento com as bocas de fumo do Souza. A arma que Fernando portava era do cunhado Júlio César Figueiredo, o Tigrila, 30 anos, membro do Primeiro Comando da Capital (PCC) e traficante do Beija-Flor.
Latrocínio
Foragido da polícia e jurado de morte pela gangue do Souza, Fernando ordenou que dois menores, que trabalhavam para ele nas bocas de fumo do Beija-Flor, arrumassem dinheiro para que ele fugisse da cidade. O que seria um simples roubo, porém, acabou no assassinato do mototaxista Marcelo Letrinta, 37 anos, dois dias após a morte de Azenha. Depois de entregar R$ 300 à dupla, a vítima também foi assassinada com a arma de Tigrila.
Fernando fugiu, mas foi preso em São Paulo em 26 de novembro do ano passado. Quinze dias depois, Tigrila estava com a irmã de Fernando e duas crianças dentro do carro no bairro São Bernardo quando foi executado com quatro tiros. "Fizeram churrasco no Souza para comemorar a morte", diz uma moradora do bairro.
Foi a última morte da guerra entre as gangues, mas a tensão nos dois bairros permanece. "Quem é do Souza não põe os pés aqui, e quem é do Beija-Flor faz o mesmo. A gente não sabe do que essa rapaziada é capaz", diz um morador do Beija-Flor, que não quis se identificar.
No dia 6 de janeiro, durante audiência no Fórum de Mirassol, o Ministério Público solicitou escolta policial depois de receber denúncia de que Fernando seria assassinado no local, durante júri das mortes de Azenha, Pezão e Letrinta. "Havia um risco muito grande de invasão do prédio", diz o promotor José Heitor dos Santos.
Condenado a três anos de internação na Fundação Casa, Fernando soltou o grito ao deixar o Fórum: "Vou sair matando". Atualmente, ele está na unidade de Marília. "O risco dele ser assassinado é grande", diz o delegado Galavotti. Fernando é o primeiro da lista dos marcados para morrer do Souza. Os outros são a irmã dele e funcionários das suas bocas no Beija-Flor. Do lado contrário, estão na lista aliados de Pezão e Azenha, como Daniel Alves Pacola, 20 anos.
Guilherme Baffi
Júlio César Figueiredo, o Tigrila, foi executado em dezembro no bairro São Bernardo, em Mirassol, com quatro tiros
'Antes de morrer, ele leva uns dois'
Pivô da guerra do tráfico em Mirassol, Fernando (nome fictício), 17 anos, ascendeu rapidamente no submundo das drogas. Experimentou droga pela primeira vez aos 11 anos, influenciado por um cunhado. Com 14 abandonou a escola - cursava a 5ª série - e passou a gerenciar duas bocas de fumo no bairro Beija-Flor, periferia da cidade, onde passou a morar com a irmã depois que os pais se separaram.
"Meu irmão sempre foi meio nervoso, estressado, mas sempre teve o respeito da molecada e do Comando (PCC). Aqui em casa ele é um cara bacana, de paz", diz a irmã A.M.. Segundo ela, o assassinato de Luiz Carlos Azenha tem relação com uma ex-namorada de Fernando que passou a se relacionar com o estudante de farmácia. "Ele matou o Azenha dentro do carro, e disse para mim que queria atirar no Pacola (Daniel Alves Pacola, colega de Azenha), mas a arma falhou", afirmou. Segundo escutas da polícia, Fernando chegou a falar com integrantes do PCC em São Paulo para pedir permissão para executar Azenha.
Vingança
Segundo a irmã, Fernando ficou transtornado quando o seu cunhado, Júlio César Figueiredo, o Tigrila, foi assassinado. "Aquilo foi trairagem. Meu irmão vai se vingar. Ele já disse que, antes de morrer, leva uns dois com ele. Não vai ficar barato."
O Diário apurou, no entanto, que o PCC, a que os traficantes do Beija-Flor são vinculados, determinou que o conflito se encerre, com receio de que atraia ainda mais a atenção da mídia e da polícia. Mesmo assim, a irmã de Fernando, casada com Tigrila, e a mãe do adolescente preparam mudança para São Paulo. "Minha irmã nem sai de casa, com medo que aconteça alguma coisa", diz A.M.
Colaborou Eliene Berlato

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