13 de junho de 2010

1. Proposta Proposta para desamarrar a inovação brasileira


artigo de Rubens Naves

"Projetos dessa natureza, porém, têm sempre um caráter exploratório, marcado por níveis diferenciados de incerteza e risco, sendo inviável o estabelecimento prévio, por exemplo, de prazos ou valores - exatamente o contrário do que exige a Lei"

Rubens Naves é advogado, professor licenciado da Faculdade de Direito da PUC/SP e sócio fundador de Rubens Naves, Santos Jr., Hesketh - Escritórios Associados de Advocacia. Atua como conselheiro do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria) e da Fundação Faculdade de Medicina da USP. Artigo publicado no "Le Monde Diplomatique Brasil":

Entre os dias 26 e 28 de maio, realizou-se a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em Brasília. A primeira vista, o tema parece distante de nossos problemas e preocupações cotidianas, tão enigmático quanto a imagem caricaturada do cientista, de cabelos ao alto, às voltas com equações e raciocínios inacessíveis a nós, meros mortais. A realidade, felizmente, não é bem assim.

A sucessão acelerada de ondas de inovação tecnológica, deflagrada com a Revolução Industrial, vem transformando a realidade social de forma tão profunda e abrangente que, hoje, quase todas as atividades cotidianas de grande parte da população planetária dependem da utilização de instrumentos e produtos recém-inventados.

Da vacina contra a gripe H1N1 aos automóveis flex, da internet aos satélites que nos dizem se no fim de semana haverá sol ou chuva, do celular que toca ao lado à maior oferta de alimentos nas gôndolas do supermercado - para qualquer lado que se olhe, encontram-se novidades cuja importância vai deixando de ser notada na medida em que se incorporam à nossa rotina.

A vulgarização crescente das aplicações do conhecimento científico tende a reduzir nossa surpresa diante das inovações, mas, se passamos a ver o desenvolvimento tecnológico como fruto de geração espontânea, estaremos sendo tão ingênuos quanto quem ainda duvida que o homem chegou à lua.

Como também seria ingênuo pensar que poderemos enfrentar, sem ciência, os grandes desafios que se colocam agora para a humanidade. Um deles - as mudanças climáticas - aponta um cenário de aquecimento do planeta, aumento do nível do mar e mudanças na frequência e intensidade de eventos meteorológicos extremos, castigando especialmente a agricultura e os países mais pobres. É na ciência que residem nossas melhores chances de criar mecanismos para reverter ou diminuir esses efeitos e adaptar a sociedade às novas condições de vida.

O Brasil pode e deve exercer um papel importante nesse cenário. Contamos com um contingente expressivo e altamente qualificado de cientistas e pesquisadores, responsáveis por colocar o país no 13º lugar no mundo em número de artigos publicados. Abrigamos aproximadamente 12% da biodiversidade planetária e a maior biodiversidade biológica terrestre. Por que será, então, que somos tomados pela permanente sensação de que esse potencial todo ainda não se traduz, plenamente, em utilidades de valor econômico, ambiental e social?

Não tenho dúvidas ao afirmar que uma das razões para esse estado de coisas está na legislação. A explicação é simples. A ciência brasileira ainda é produzida, majoritariamente, no ambiente estatal, principalmente pelas universidades, instituições de ciência e tecnologia e agências de fomento públicas. Todas essas entidades são obrigadas a seguir a lei n. 8.666/93 (Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos). E isso gera um duplo entrave.

Em primeiro lugar, a licitação exige a prática de inúmeros atos, cuja ordem, formas e prazos são pré-estabelecidos, abrindo a possibilidade de impugnações e recursos que podem prolongá-la indefinidamente. Mesmo nos casos em que a Lei autoriza expressamente a dispensa desse verdadeiro rito, a interpretação restritiva adotada pelos tribunais de contas e demais órgãos de controle acaba, na prática, por desestimular ou impedir que o agente público faça uso da exceção legal.

Por consequência, as compras de insumos e equipamentos ou a contratação de obras e serviços destinados à pesquisa científica e tecnológica ficam sujeitas a um procedimento burocrático e moroso, totalmente incompatível com a flexibilidade e agilidade inerentes ao setor.

Até aí, alguém poderia argumentar que se trata de um problema comum a toda Administração Pública, ainda que seus efeitos se façam sentir de forma mais desastrosa na área científica.

Ocorre que a Lei cria um segundo entrave. Para que a ciência se traduza em benefícios concretos para os cidadãos e para o país, é fundamental a aproximação entre os centros produtores de ciência e as empresas. É essa interação dinâmica, de aplicação prática do conhecimento para a geração de novos e melhores processos, produtos e serviços, que dá sentido a inovações tecnológicas.

Projetos dessa natureza, porém, têm sempre um caráter exploratório, marcado por níveis diferenciados de incerteza e risco, sendo inviável o estabelecimento prévio, por exemplo, de prazos ou valores - exatamente o contrário do que exige a Lei. Some-se a isso o fato de que as instituições públicas não podem oferecer às empresas parceiras garantias de contratação caso o projeto seja bem sucedido e se concluirá, facilmente, que a legislação mais dificulta do que estimula esse tipo de parceria e o aporte de investimentos privados em favor da ciência. Perdem as instituições públicas, perdem as empresas, perde o país.

Não foi mera coincidência, portanto, que o marco regulatório foi recorrentemente apontado, nos debates ocorridos na 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, como um dos principais entraves a um maior avanço do país no setor.

Como transformar essa situação? Um grupo liderado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências, do qual tive a honra de participar, elaborou uma proposta simples, mas de enorme impacto. Trata-se de autorizar que as instituições de ciência e tecnologia e as agências de fomento possam realizar suas compras, contratações e parcerias com base em um regulamento próprio, adaptado às peculiaridades de cada uma, e não mais na lei n. 8.666/93. A proposta preserva a atuação dos órgãos de controle, concedendo maior autonomia em troca de níveis mais elevados de transparência e prestação de contas.

Na abertura da 4ª Conferência Nacional, a proposta foi oficialmente entregue ao Presidente Lula, que tem sido um grande entusiasta do papel estratégico que cabe à ciência para o desenvolvimento sustentável do país no século 21. Esperamos que o Presidente abrace mais essa causa. Com um único passo, teremos percorrido uma enorme distância em direção ao futuro.

(Le Monde Diplomatique Brasil, junho/2010)

, artigo de Rubens Naves

"Projetos dessa natureza, porém, têm sempre um caráter exploratório, marcado por níveis diferenciados de incerteza e risco, sendo inviável o estabelecimento prévio, por exemplo, de prazos ou valores - exatamente o contrário do que exige a Lei"

Rubens Naves é advogado, professor licenciado da Faculdade de Direito da PUC/SP e sócio fundador de Rubens Naves, Santos Jr., Hesketh - Escritórios Associados de Advocacia. Atua como conselheiro do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria) e da Fundação Faculdade de Medicina da USP. Artigo publicado no "Le Monde Diplomatique Brasil":

Entre os dias 26 e 28 de maio, realizou-se a 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em Brasília. A primeira vista, o tema parece distante de nossos problemas e preocupações cotidianas, tão enigmático quanto a imagem caricaturada do cientista, de cabelos ao alto, às voltas com equações e raciocínios inacessíveis a nós, meros mortais. A realidade, felizmente, não é bem assim.

A sucessão acelerada de ondas de inovação tecnológica, deflagrada com a Revolução Industrial, vem transformando a realidade social de forma tão profunda e abrangente que, hoje, quase todas as atividades cotidianas de grande parte da população planetária dependem da utilização de instrumentos e produtos recém-inventados.

Da vacina contra a gripe H1N1 aos automóveis flex, da internet aos satélites que nos dizem se no fim de semana haverá sol ou chuva, do celular que toca ao lado à maior oferta de alimentos nas gôndolas do supermercado - para qualquer lado que se olhe, encontram-se novidades cuja importância vai deixando de ser notada na medida em que se incorporam à nossa rotina.

A vulgarização crescente das aplicações do conhecimento científico tende a reduzir nossa surpresa diante das inovações, mas, se passamos a ver o desenvolvimento tecnológico como fruto de geração espontânea, estaremos sendo tão ingênuos quanto quem ainda duvida que o homem chegou à lua.

Como também seria ingênuo pensar que poderemos enfrentar, sem ciência, os grandes desafios que se colocam agora para a humanidade. Um deles - as mudanças climáticas - aponta um cenário de aquecimento do planeta, aumento do nível do mar e mudanças na frequência e intensidade de eventos meteorológicos extremos, castigando especialmente a agricultura e os países mais pobres. É na ciência que residem nossas melhores chances de criar mecanismos para reverter ou diminuir esses efeitos e adaptar a sociedade às novas condições de vida.

O Brasil pode e deve exercer um papel importante nesse cenário. Contamos com um contingente expressivo e altamente qualificado de cientistas e pesquisadores, responsáveis por colocar o país no 13º lugar no mundo em número de artigos publicados. Abrigamos aproximadamente 12% da biodiversidade planetária e a maior biodiversidade biológica terrestre. Por que será, então, que somos tomados pela permanente sensação de que esse potencial todo ainda não se traduz, plenamente, em utilidades de valor econômico, ambiental e social?

Não tenho dúvidas ao afirmar que uma das razões para esse estado de coisas está na legislação. A explicação é simples. A ciência brasileira ainda é produzida, majoritariamente, no ambiente estatal, principalmente pelas universidades, instituições de ciência e tecnologia e agências de fomento públicas. Todas essas entidades são obrigadas a seguir a lei n. 8.666/93 (Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos). E isso gera um duplo entrave.

Em primeiro lugar, a licitação exige a prática de inúmeros atos, cuja ordem, formas e prazos são pré-estabelecidos, abrindo a possibilidade de impugnações e recursos que podem prolongá-la indefinidamente. Mesmo nos casos em que a Lei autoriza expressamente a dispensa desse verdadeiro rito, a interpretação restritiva adotada pelos tribunais de contas e demais órgãos de controle acaba, na prática, por desestimular ou impedir que o agente público faça uso da exceção legal.

Por consequência, as compras de insumos e equipamentos ou a contratação de obras e serviços destinados à pesquisa científica e tecnológica ficam sujeitas a um procedimento burocrático e moroso, totalmente incompatível com a flexibilidade e agilidade inerentes ao setor.

Até aí, alguém poderia argumentar que se trata de um problema comum a toda Administração Pública, ainda que seus efeitos se façam sentir de forma mais desastrosa na área científica.

Ocorre que a Lei cria um segundo entrave. Para que a ciência se traduza em benefícios concretos para os cidadãos e para o país, é fundamental a aproximação entre os centros produtores de ciência e as empresas. É essa interação dinâmica, de aplicação prática do conhecimento para a geração de novos e melhores processos, produtos e serviços, que dá sentido a inovações tecnológicas.

Projetos dessa natureza, porém, têm sempre um caráter exploratório, marcado por níveis diferenciados de incerteza e risco, sendo inviável o estabelecimento prévio, por exemplo, de prazos ou valores - exatamente o contrário do que exige a Lei. Some-se a isso o fato de que as instituições públicas não podem oferecer às empresas parceiras garantias de contratação caso o projeto seja bem sucedido e se concluirá, facilmente, que a legislação mais dificulta do que estimula esse tipo de parceria e o aporte de investimentos privados em favor da ciência. Perdem as instituições públicas, perdem as empresas, perde o país.

Não foi mera coincidência, portanto, que o marco regulatório foi recorrentemente apontado, nos debates ocorridos na 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, como um dos principais entraves a um maior avanço do país no setor.

Como transformar essa situação? Um grupo liderado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências, do qual tive a honra de participar, elaborou uma proposta simples, mas de enorme impacto. Trata-se de autorizar que as instituições de ciência e tecnologia e as agências de fomento possam realizar suas compras, contratações e parcerias com base em um regulamento próprio, adaptado às peculiaridades de cada uma, e não mais na lei n. 8.666/93. A proposta preserva a atuação dos órgãos de controle, concedendo maior autonomia em troca de níveis mais elevados de transparência e prestação de contas.

Na abertura da 4ª Conferência Nacional, a proposta foi oficialmente entregue ao Presidente Lula, que tem sido um grande entusiasta do papel estratégico que cabe à ciência para o desenvolvimento sustentável do país no século 21. Esperamos que o Presidente abrace mais essa causa. Com um único passo, teremos percorrido uma enorme distância em direção ao futuro.

(Le Monde Diplomatique Brasil, junho/2010)

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