23 de março de 2010

O Nobel Amartya Sen contesta a ideia de
um único princípio unificador a indicar as instituições
justas para construir o bem-estar.

Uma crítica ao individualismo
dominante na economia


Por Ricardo Abramovay, para o Valor, de São Paulo
23/03/2010
"The Idea of Justice" - Amartya Sen. Harvard University Press, 304
págs, R$ 72,78 na Livraria Cultura
AP
Amartya Sen: o centro de
uma avaliação refletida do
mundo atual deve ser
ocupado pelas vidas reais
dos indivíduos
O importante não é definir uma sociedade perfeitamente justa e
sim estudar, avaliar e estimular o debate entre as diferentes
medidas e os diferentes interesses voltados à permanente redução
da injustiça. Buscar uma sociedade justa e lutar contra a injustiça
não são dois lados da mesma moeda ou a imagem (revelada ou em
negativo) da mesma cena. São horizontes filosóficos opostos que
fundamentam visões contraditórias sobre a organização social.
Por um lado, encontra-se a tradição contratualista que vem de
Hobbes, Rousseau, Kant, cuja expressão contemporânea está na
maior obra de filosofia política do século XX, a do americano John
Rawls, autor de "Uma Teoria da Justiça" (1971). Por outro, está a
teoria da escolha social que nasce na Revolução Francesa, quando
o marquês de Condorcet se dá conta da dificuldade inerente à
formação de qualquer maioria representativa e racionalmente
consistente. Na segunda metade do século XX, o Prêmio Nobel de
Economia Kenneth Arrow oferece a demonstração matemática das
dificuldades, na teoria microeconômica do bem-estar, de tomar
decisões coletivas com base na agregação de preferências
individuais.
Mas por que razão escolha social e contrato social colocam-se em
campos opostos? Afinal, os dois valorizam a razão humana (e não a
autoridade arbitrária) como base para a tomada de decisões
coletivas. Ambos exprimem o desejo de alterar a situação presente
em direção a um futuro melhor e nos dois casos o debate é o
mecanismo por excelência da ação pública.
A maneira como o economista e filósofo indiano Amartya Sen,
Nobel de Economia de 1998, reconhece essas identidades em "The
Idea of Justice" é tanto mais interessante que ele foi amigo e
colaborador intelectual dos mais importantes pensadores
contemporâneos vinculados à tradição contratualista.
A grande diferença entre as duas abordagens é que o
contratualismo desemboca no projeto de construir instituições que
permitam a existência de uma sociedade justa. Partindo da
premissa de que algum grau de desigualdade deve existir na vida
social, John Rawls, por exemplo, propõe uma questão central: qual
deve ser essa desigualdade para que possa haver, ao mesmo
tempo, incentivos ao progresso material, sem que se produzam
situações iníquas de miséria e privação?
Para que a resposta não reflita simplesmente os interesses dos
atuais protagonistas do debate, o exercício deve ser encoberto por
um "véu de ignorância" sob o qual seus participantes determinam
qual é o nível de desigualdade socialmente útil, sem saber, no
entanto, quem serão os ocupantes dos diferentes lugares sociais a
que essa desigualdade dará origem. Portanto, abre-se o caminho
para que, de forma impessoal (e com base na razão e no debate),
seja concebida uma ordem justa.
A crítica de Sen não se reduz às óbvias dificuldades práticas de
levar tal exercício adiante e do irrealismo do pressuposto
igualitário em que ele se apoia. Em primeiro lugar, com base na
teoria da escolha social, Sen contesta que possa haver um e único
princípio unificador a indicar quais são as instituições justas para
construir o bem-estar humano.
O contratualismo padece de uma espécie intelectualmente ingênua
e politicamente perigosa de crença na capacidade unificadora da
razão. Sen mostra, ao contrário, que podem ser múltiplas as razões
subjacentes às escolhas dos indivíduos e são inúmeras as
circunstâncias em que os julgamentos guiados e justificados
racionalmente resultam em situações absolutamente opostas.
Somente avaliações apoiadas nos produtos concretos dessas
diferentes situações, a partir de debate aberto, bem informado e
diversificado, é que podem fazer avançar a luta contra a injustiça.
Ao rejeitar a ideia de uma ordem racionalmente justa Sen rejeita
igualmente o que chama de paroquialismo de procedimentos: não
se trata de imaginar que a justiça é um valor relativo a cada
cultura e, portanto, incomensurável. Ao contrário, o importante é
que o debate público e em escala internacional permite sempre
que essas diferentes ordens de justificação entrem em debate. Daí
a fertilidade dos movimentos sociais, mesmo os mais radicais.
Mas, sobretudo, Sen convida a pôr em evidência, no
estabelecimento dos critérios da escolha social, as liberdades
substantivas dos indivíduos, suas realizações, abordando-as sempre
sob um parâmetro comparativo e não a partir de um critério
absoluto e transcendental de justiça. Muito longe de uma postura
cética ou conformista, esse horizonte abre caminho para que a
escolha social possa contar com elementos da racionalidade
humana que dificilmente entram na tradição contratualista.
O livro de Sen é talvez a mais profunda crítica atual ao
individualismo metodológico, dominante na economia: os
indivíduos podem ter preferências que se referem, por exemplo, à
justiça social ou ao bem-estar dos outros e não apenas a seus
estritos interesses pessoais.
O centro de uma avaliação refletida do mundo atual deve ser
ocupado pelas vidas reais dos indivíduos, pelas liberdades de que
desfrutam e por seu poder real de fazer as opções que lhes sejam
convenientes. Não se trata de chegar aí como resultado indireto e
não antecipado de mecanismos como o crescimento econômico ou
instituições como a garantia da propriedade, a liberdade de fazer
negócios ou o sufrágio universal.
A luta contra a injustiça envolve uma deliberação intencional
voltada a promover realizações humanas capazes de enriquecer a
vida. Isso supõe traços concretos de organização social (que Sen
chama de capacitações), como acesso à educação, à saúde, ao
trabalho digno e também uma relação com a natureza que não se
volte apenas a manter nossos atuais padrões de vida, mas possa
assumir responsabilidades pela resiliência dos ecossistemas, muito
além daquilo em que eles nos são imediatamente úteis.
Na Ideia de Justiça de Sen reside uma visão do ser humano como
construtor de seu futuro, propenso a se indignar contra a
humilhação, voltado a ampliar a liberdade, o debate racional e não
como o produto inconsciente das boas instituições.
Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de
economia da FEA da Universidade de São Paulo, coordenador do
Núcleo de Economia Socioambiental

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